quinta-feira, 29 de setembro de 2011

cores de parto



"O que eu vi,
à nascença, foi o céu.

No rasgão da retina,
a desatada luz: o meu segundo oceano.

Aprendi a ser cego
antes de, em linha e cor,
o mundo se revelar.

O que depois vi,
ainda sem saber que via,
foram as mãos.

Parteiros gestos
me ensinaram quanto,
das mãos,
a vida inteira vamos nascendo.

As mãos foram,
assim, o meu segundo ventre.

Luz e mãos
moldaram a impossível fronteira
entre oceano e ventre.

Luz e mãos
me consolaram
da incurável solidão de ter nascido."

Mia Couto

quarta-feira, 28 de setembro de 2011



"...Eu quero apenas amar-te lentamente
Como se todo o tempo fosse nosso
Como se todo o tempo fosse pouco
Como se nem sequer houvesse tempo."


Joaquim Pessoa


"Por tudo o que me deste:
— Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco...
— Obrigado, obrigado!

Por aquela tão doce e tão breve ilusão.
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!

Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
— Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado...
Sem ironia, amor:
— Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!"

Carlos Queirós


"Há a boca pisada de pedras,
e o remorso
é uma parede mordida pelo eco.
A mulher fechou-se no quarto
com a noite entre as mãos.
Está funda na casa.
Mas partidas todas as lâmpadas
a cegueira é ainda uma forma de ver."

Jorge Melícias

quem sabe um dia



"Quem sabe um dia
Quem sabe um seremos
Quem sabe um viveremos
Quem sabe um morreremos!

Quem é que
Quem é macho
Quem é fêmea
Quem é humano, apenas!

Sabe amar
Sabe de mim e de si
Sabe de nós
Sabe ser um!

Um dia
Um mês
Um ano
Uma vida!

Sentir primeiro, pensar depois
Perdoar primeiro, julgar depois
Amar primeiro, educar depois
Esquecer primeiro, aprender depois

Libertar primeiro, ensinar depois
Alimentar primeiro, cantar depois

Possuir primeiro, contemplar depois
Agir primeiro, julgar depois

Navegar primeiro, aportar depois
Viver primeiro, morrer depois."

Mario Quintana


"Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa - não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio."

Bernardo Soares

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

toalha branca



"Uma toalha branca esvoaça –
Acontecimento único no espaço –
embora fluidos se diluam entre dúvidas e certezas,
embora riscos passem invisíveis, vacilando,
embora meteoros jamais vistos se beijem impotentes,
embora sombras agigantadas se agitem nos crepúsculos,
embora abismos contorcidos se abram e se fechem,
embora coisas imóveis perpassem e retornem,
embora uma roda gire, silenciosamente fechada,
embora ninguém se fale, e as vozes encham o ar,
embora o preventivo transforme-se em soluço seco,
embora uma lágrima – ou milhares – não se agitem,
embora redemoinhos eflúvios chamusquem almas –
uma toalha branca esvoaça
decompondo-se a cada vôo, a cada passo."

Ana Cristina Cesar - Inéditos e dispersos

Day Dream




" Esse castelo
o que há de antigo
nosso no ar
vai se construindo
em meio improvável
desatento.

Tantas referências
nossas lentes
fora desse mundo
do vago ralo
da rapidez indiferente.

Nesse nosso castelo
vão circulando, vivos,
tantos Dukes, Claudes, Luchinos
e vários James amigos
nossos companheiros de sempre.

Sonhos aprisionados
nessa torre
ilha
correm soltos
mar de marfim
por dentro.

Dedicar cada dia
entre tantos
inúteis momentos
a refinar
cada gesto palavra cor
ou sentimento.

Nadar no vazio alheio
movidos
por nosso sonho
claro e tácido
acordar comovido
da mente em movimento.

Nesse castelo, nossa praia
essa coragem nossa
sua presença acende.
Um mundo raro
um sonho em claro
doce recheio
sem resposta.

Sonhamos
vida
sempre acordados
um sonho contrário
que se arrasta em brilho
contra a corrente."

Frederico Barbosa

Noite



Tão perto!
Tão longe!
Por onde
é o deserto?
Às vezes,
responde,
de perto,
de longe.
Mas depois
se esconde.
Somos um
ou dois?
Às vezes,
nenhum.
E em seguida,
tantos!
A VIDA
TRANSBORDA
POR TODOS
OS CANTOS
Acorda
com modos
de puro
esplendor.
Procuro
meu rumo;
horizonte
escuro:
um muro
em redor.
em treva
me sumo.
Para onde
me leva?

Pergunto a Deus se estou viva,
se estou sonhando ou acordada.
Lábio de Deus! - Sensitiva
tocada.

Cecília Meireles

quarta-feira, 21 de setembro de 2011



"Sonhei um sonho
e lembrei-me do sonho
e esqueci-me do sonho
e sonhei que procurava
em sonho aquele sonho
E PERGUNTO SE A VIDA
NÃO É UM SONHO QUE PROCURAVA UM SONHO."

Cecília Meireles


"para onde fugir?
TU ENCHES O MUNDO.
não posso fugir de ti senão em ti."

M. Yourcenar



"Ser feliz é maravilhoso
é como ter um balão dentro de ti
e o balão está cheio de ar quente
tu ficas leve e quase a voar.
Às vezes sentes-te feliz
juntamente com os outros.
Quando estiveste longe
e houve alguém que esteve à tua espera
ou quando uma pessoa diz um segredo
que só nós sabemos.
Quando sentado quieto junto de outra pessoa
compreendes como ambos são amigos.
És feliz
quando consegues finalmente fazer alguma coisa
que devias fazer mas não ousavas.
Às vezes podes ser feliz
quando estás só.
Quando a Primavera chega de repente
e tu navegas no primeiro barco à vela do ano
ou quando caem os primeiros flocos de neve do Inverno
e tocam docemente a tua cara molhada.
Quando começas a pensar em alguém
que gosta de ti
ou quando um amigo defende
o que tu disseste ou fizeste.
Mas ficarás mais feliz do que nunca
quando tornares feliz outra pessoa.
Quando visitares alguém que está sozinho
e tiveres tempo para ficar lá muito tempo
ou fizeres alguma coisa por alguém
que foi duramente magoado.
Então o balão sobe
redondo de alegria
e voa até tocar as mãos de Deus."

Leif Kristiansson -
Tradução de Sophia de Mello Breyner

quem é teu amigo ?



" Ter um amigo
é maravilhoso

Ser amigo, de alguém
Ainda é melhor

É como acordar
e sentir o sol a brilhar

Um amigo é alguém
com quem se está bem

Mas um amigo é muito mais do que isso!
É alguém que pensa em ti
quando não estás aqui

Alguém que bate com os dedos na madeira
quando tu tens que fazer coisas difíceis

Nunca se está realmente só
quando se tem um amigo

Um amigo ouve
o que tu dizes
E tenta compreender
o que tu não sabes dizer

Um amigo gosta de ti
mesmo quando fazes asneiras

Um amigo ensina-te
a gostar de coisas novas

Um amigo é uma palavra bonita.
É quase
a melhor palavra!

Um amigo é alguém
Que tem tempo para ti

Um amigo, é alguém
Que é para ti uma festa
Alguém que pensa em ti
E te ouve
E te ajuda a saber o que tu és

Alguém que te ajuda a descobrir as coisas
Alguém que está contigo e não tem pressas

Alguém em quem tu podes acreditar
Quem é teu amigo(?) "

Leif kristiansson - Um amigo

domingo, 18 de setembro de 2011

a outra face



"se a fogo fere o amor
a alma e o corpo

o corpo ainda assim vez
por outra regozija

a mágoa ata

e o ódio nada é que o amor
visto do avesso do espelho"

Márcia Maia


"Perder-se é uma maneira de fazer novos caminhos e quebrar a rotina.
Ninguem acha um atalho sem se perder antes."

Fabrício Carpinejar


sexta-feira, 16 de setembro de 2011



"Minha tática é
olhar-te
aprender como tu és
querer-te como tu és

minha tática é
falar-te
e escutar-te
construir com palavras
uma ponte indestrutível

minha tática é
ficar em tua lembrança
não sei como nem sei
com que pretexto
porém ficar em ti

minha tática é
ser franco
e saber que tu és franca
e que não nos vendemos
simulados
para que entre os dois

não haja cortinas
nem abismos

minha estratégia é
em outras palavras
mais profunda e mais
simples
minha estratégia é
que um dia qualquer
não sei como nem sei
com que pretexto
por fim me necessites."

Mário Benedetti - Tática e Estratégia

quinta-feira, 15 de setembro de 2011



"É bom mudar de casa, de janela,
arrumar de outra maneira as ilusões,
tratar de coisas puras como tintas e sofás,
pôr ordem entre os livros e a vida,
simular a liberdade.
Parece-nos possível voltar a acreditar na mão
que nos estende um pé de salsa,
na pechincha da beleza, quando passa no poente da razão.
Apetece cometer uma loucura, comprar um telescópio,
decorar o canto nono dos Lusíadas,subir umas escadas do avesso,
pensar que nunca mais teremos frio."

José Miguel Silva

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

mergulho



"no espaço exígüo
entre teus olhos e o sol
da tarde que se vai

pereço
afogo-me

a mim não me foi dado
saber nadar em águas rasas"


Márcia Maia

acalanto



"Por te me seres único
não sei te dizer

por te me seres raro
a ti não sei dizer

Se me és tudo em tudo
inteiro a ti eu sei

por te me seres pássaro
e asas eu não ter

tanto sei te sentir
só te não sei dizer "

Márcia Maia

terça-feira, 13 de setembro de 2011



"tu mentes que vens
e eu que creio e espero
finjo que em nada acreditei


(lá fora cantam
os últimos bem-te-vis
é verão e anoitece tarde)"

Márcia Maia - Pacto

domingo, 11 de setembro de 2011



"Agora que escurece, impregnam-me
a carne os sucos da memória, essa memória
que, pela sua força unicamente,
a ergue entre os destroços e a alumia
como uma lamparina
onde as lembranças fossem o azeite."

Luís Miguel Nava

de algum lado



"hei-de ter-te na respiração de um livro
e ficar só num poema com um amor que não morreu
como a pálida penumbra
que me habita - casa estéril
inutilmente caiada."
Maria Gomes



"não podemos perder o que sobra da luz
de algum lado;
sobre a pele, existe a hora de coisas impassíveis.
os comboios brancos,
aquela flor voltada à janela, falando-nos.

não, meu amor, não podemos perder a raiz
de um corpo incandescente, agora, derramado."

quinta-feira, 8 de setembro de 2011



Houvesse um sinal a conduzir-nos
E unicamente ao movimento de crescer nos guiasse.
Termos das árvores
A incomparável paciência de procurar o alto
A verde bondade de permanecer
E orientar os pássaros.

tempo azul



"Eis o outro tempo
o tempo azul
o tempo de tocar a rosa
e abraçar irmãos.
Tempo
largo e fundo.
Tempo para se ter o tempo
que nos foge.
Tempo de morrer na vertical
do corpo portentoso
do amor.
Azul será a cor.
Azul o tempo de nascer
e renascer
outra e outra vez
em busca do cristal
escondido em cada pedra."

José Fanha

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Asas



"Com palavras tenho asas que me levam a voar
com palavras vou tão longe quanto o sonho me levar."



Nós nascemos para ter asas meus amigos.
Não se esqueçam de escrever por dentro do peito: nós
nascemos para ter asas.
No entanto, em épocas remotas, vieram com dedos
pesados de ferrugem para gastar as nossas asas como
se gastam tostões.
Cortaram-nos as asas para que fôssemos apenas
operários obedientes, estudantes atenciosos, leitores
ingénuos
de notícias sensacionais, gente pouca, pouca e seca.
Apesar disso, sábios, estudiosos do arco-íris e de coisas
transparentes, afirmam que as asas dos homens crescem
mesmo depois de cortadas, e, novamente cortadas
de novo voltam a ser.
Aceitemos essa hipótese, apesar não termos dela
qualquer confirmação prática.
Por hoje é tudo. Abram as janelas. Podem sair.

José Fanha

A palma da tua mão não tem segredo...



"A palma da tua
mão não tem segredo
algum. Letra em tua mão
é de nome nenhum.
Não há mistério nem mensagem
no lenho aleatório.

Tua mão tem destino noutras palmas.
Confidência, piedade, ira. Deixa que,
aberta, distribua-se ao ponto – à perfeição –
de não ser mais tua mão: pátio,
pouso necessário de quem jamais te viu."

No mundo



No mundo,
Só comigo, me deixaram
Os deuses que dispõem.
Não posso contra eles: o que deram
Aceito sem mais nada.
Assim, o trigo baixa ao vento, e, quando
O vento cessa, ERGUE-SE.

Ricardo Reis

Paisagem para Anna Akhmátova



"O corpo, ainda corpo,
sabe de cor
a dor. Dizer adeus,
carpir, esconder,
bater palavras contra o muro.
Ruas de São Petersburgo
sob a neblina – o corpo
sabe de cor
onde se morre.
Mas, por entre o estridor
de soldados e funcionários,
cava uma saída:
o próximo poema
(promessa de delicadeza e silêncio)
– ouve cantar uma cereja."

sábado, 3 de setembro de 2011



"Se eu própria me bastasse, fugiria para sempre. Do teu corpo, das mãos quentes.
Mas sou frágil como um grão de neve. Derreto-me com leves sussurros e a ternura estonteia-me. Sofro de constante abstinência de amor."

Pedro Paixão - A noiva judia


"tenho um silêncio dentro.
toco os sítios onde estiveram as tuas mãos.
sinto o que sentiste.

fico acordado de noite, com a esperança secreta de
que possas regressar.

José Luís Peixoto