sábado, 31 de março de 2012
sobre o lado esquerdo

"De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa: "O melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração".
Carlos de Oliveira
Sem Regresso

"Partir.
Abandonar-me.
Abandonar-te.
Foi isto que pensei antes do último beijo,
Do último toque suave,
Da última gota do teu perfume a invadir-me as narinas.
Deixar de ser eu para poder deixar de ser tua.
Estou confusa. Apetece-me cair,
Apetece-me dormir até que chova,
Até que a água arremesse esta solidão que guardaste para me oferecer no último dia.
Estavas ainda a dormir.
Saí sem dizer adeus,
Saí sem saber se voltava,
Sai sem saber se poderia dizer-te que sou incapaz de voltar.
Sei que me amas,
Sei que me amarás mesmo quando não estiver,
Sei que não sou aquilo que escolheste
E isso basta-me para partir.
Não tenhas medo.
Afinal, queria apenas poder amar por instantes,
E isso nunca um outro alguém poderia fazê-lo de forma tão perfeita."
Isa Mestre
terça-feira, 27 de março de 2012
quarta-feira, 21 de março de 2012
ver claro
terça-feira, 20 de março de 2012
armado de amor

"Volto armado de amor
para trabalhar cantando
na construção da manhã.
Reparto a minha esperança
e canto a clara certeza
da vida nova que vem.
Um dia, a cordilheira em fogo,
quase calaram para sempre
o meu coração de companheiro.
Mas, atravessei o incêndio
e continuo a cantar.
Ganhei, sofrendo,
a certeza de que o mundo não é só meu.
Mais que viver,
o que importa é trabalhar na mudança
(antes que a vida apodreça)
do que é preciso mudar.
Cada um na sua vez,
cada qual no seu lugar."
Thiago de Mello
segunda-feira, 19 de março de 2012
sábado, 17 de março de 2012

"Se não falas, vou encher o meu coração
Com o teu silêncio, e aguentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite
Em sua vigília estrelada,
Com a cabeça pacientemente inclinada.
A manhã certamente virá,
A escuridão se dissipará, e a tua voz
Se derramará em torrentes douradas por todo o céu.
Então as tuas palavras voarão
Em canções de cada ninho dos meus pássaros,
E as tuas melodias brotarão
Em flores por todos os recantos da minha floresta."
Rabindranath Tagore
quinta-feira, 15 de março de 2012
quarta-feira, 14 de março de 2012

"Naquela nuvem, naquela,
mando-te meu pensamento:
que Deus se ocupe do vento.
Os sonhos foram sonhados,
e o padecimento aceito.
E onde estás, Amor-Perfeito?
Imensos jardins da insônia,
de um olhar de despedida
deram flor por toda a vida.
Ai de mim que sobrevivo
sem o coração no peito.
E onde estás, Amor-Perfeito?
Longe, longe, atrás do oceano
que nos meus olhos se aleita,
entre pálpebras de areia...
Longe, longe... Deus te guarde
sobre o seu lado direito,
como eu te guardava do outro,
noite e dia, Amor-Perfeito."
Cecília Meireles - Poema do Amor Perfeito

"De repente, intrometem-se uns nacos de sonhos; Uma
remembrança de mil novecentos e onze;
Um rosto de moça cuspido no capim de borco; Um
cheiro de magnólias secas. O poeta procura compor
esse inconsútil jorro; Arrumá-lo num poema; e o
faz. E ao cabo Reluz com a sua obra. Que
aconteceu? Isto: O homem não se desvendou, nem foi
atingido: Na zona onde repousa em limos
Aquele rosto cuspido e aquele
Seco perfume de magnólias,
Fez-se um silêncio branco... E, aquele
Que não morou nunca em seus próprios abismos
Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas
Não foi marcado. Não será marcado. Nunca será
exposto Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao
poema."
Manoel de Barros
segunda-feira, 12 de março de 2012
a vida real

"Imperecível, de cristal, é a VIDA REAL"
António Franco Alexandre
António Franco Alexandre
"Se existisses, serias tu,
talvez um pouco menos exacta,
mas a mesma existência, o mesmo nome, a mesma morada.
Atrás de ti haveria
as mesmas duas palmeiras, e eu estaria
sentado ao teu lado como numa fotografia.
Entretanto dobrar-se-ia o mundo
(o teu mundo: o teu destino, a tua idade)
entre ser e possibilidade,
e eu permaneceria acordado
e em prosa, habitando-te como uma casa
ou uma memória."
Manuel António Pina
sexta-feira, 9 de março de 2012

"Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme..."
Fernando Pessoa

"Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...
Saudade é amar um passado
que ainda não passou,
é recusar um presente que
nos machuca, é não ver o futuro
que nos convida...
Saudade é sentir que existe
o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
"aquela que nunca amou."
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido."
Pablo Neruda
terça-feira, 6 de março de 2012
A gente finge...

"A gente finge que arruma o guarda-roupa, arruma o
quarto, arruma a bagunça. Tira aquele tanto de
coisa que não serve, porque ocupar espaço com
coisas velhas não dá. As coisas novas querem
entrar, tanta coisa bonita nas lojas por aí. Mas a
gente nunca tira tudo. Sempre as esconde aqui,
esconde ali, finge para si mesmo que ainda serve. A
gente sabe. Que tá curta, pequeno, apertado. É que
a gente queria tanto. Tanto. Acredito que arrumar a
bagunça da vida é como arrumar a bagunça do quarto.
Tirar tudo, rever roupas e sapatos, experimentar e
ver o que ainda serve, jogar fora algumas coisas,
outras separar para doação. Isso pode servir melhor
para outra pessoa. Hora de deixar ir. Alguém
precisa mais do que você. Se livrar. Deixar pra
trás. Algumas coisas não servem mais. Você sabe.
Chega. Porque guardar roupa velha dentro da gaveta
é como ocupar o coração com alguém que não lhe
serve. Perca de espaço, tempo, paciência e
sentimento. Tem tanta gente interessante por aí
querendo entrar.
Deixa. Deixa entrar:
na vida, no coração, na cabeça.”
Caio Fernando Abreu
segunda-feira, 5 de março de 2012

"Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.
Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.
Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder."
Clarice Lispector
domingo, 4 de março de 2012

"nem sempre o que vemos é matéria pensável ou iluminante. um coração sem sentidos nem percepção espiritual é como escarpa despida e árida. nem tudo o que sentimos é perto ou sequer
nomeável. a explicação demiúrgica não chega para ser pensante. simples como a vida e a morte o momento é de espaço. infinito. que a natureza tem segredos por dentro da essência do respirar.
somos livres para a dor como para as coisas impulsivas. e rente ao excesso caímos. ideais."
Isabel Mendes Ferreira
sexta-feira, 2 de março de 2012
libertar o grito
Quase de nada místico

"Não, não deve ser nada este pulsar
de dentro: só um lento desejo
de dançar. E nem deve ter grande
significado este vapor dourado,
e invisível a olhares alheios:
só um pólen a meio, como de abelha
à espera de voar. E não é com certeza
relevante este brilhante aqui:
poeira de diamante que encontrei
pelo verso e por acaso, poema
muito breve e muito raso,
que (aproveitando) trago para ti."
Ana Luísa Amaral
(in Às Vezes o Paraíso)
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