" A missanga, todas a vêem.
Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas.
Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo."
(…) Nunca quis. Nem muito, nem parte. Nunca fui eu, nem dona, nem senhora. Sempre fiquei entre o meio e a metade. Nunca passei de meios caminhos, meios desejos, meia saudade. Daí o meu nome: Maria Metade.
Fosse eu invocada por voz de macho. Fosse eu retirada da ausência por desejo de alguém. Me tivesse calhado, ao menos, um homem completo, pessoa acabada. Mas não, me coube a metade de um homem. Se diz, de língua girada: o meu cara-metade. Pois aquele, nem meu, nem cara. E se metade fosse, não seria só a cara, mas todo ele, um semimacho. Para ambos sermos casal, necessitaríamos, enfim, de sermos quatro.
A meu esposo chamavam de Seis. Desde nascença ele nunca ascendeu a pessoa. Em vez de nome lhe puseram um número. O algarismo dizia toda a sua vida: despegava às seis, retornava às seis. Seis irmãos, todos falecidos. Seis empregos, todos perdidos.
E acrescento um segredo: seis amantes, todas actuais. Das poucas vezes que me falou, nunca paramim olhou. Estou ainda por sentir seus olhos pousarem em mim. Nem quando lhe pedi, em momento de amor: que me desaguasse uma atenção. Ao que retorquiu:
- Tenho mais onde gastar meu tempo.
Engravidei, certa vez. Mas foi semiprenhez. Desconcebi, em meio tempo, meio sonho, meia esperança.
O que eu era: um gasto, um extravio de coisa nenhuma. Depois do aborto, reduzida a ninguém, meu sofrer foi ainda maior. Sendo metade, sofria pelo dobro…”
Meia culpa, meia própria culpa in: Mia Couto. O fio das missangas.
fonte: blog companhia de aprendizagem
muito lindo mesmo lu...
ResponderExcluirtenho este livro: "o fio das missangas" e
como tudo do mia está cheio de crônicas repletas de humanidade...
bjos!